5 de junho de 2010

A Política Normal e a Psicologia do Poder (Paul Goodman)

A Política Normal e a Psicologia do Poder


Paul Goodman

(in People and Personnel, 1965)

As funções vitais, tanto biológicas quanto psicológicas e sociais, têm muito pouco a ver com aquele "poder" abstrato e preconcebido que controla ou obriga externamente as próprias funções especificas. Quando se fala em lugar comum dizer-se que o poder abstrato — na forma de força de vontade. Treinamento, disciplina, burocracia, reforma escolar, administração científica  — impede uniformemente o funcionamento normal e corrompe as pessoas nele envolvidas. (Ele serve para situações de emergência, quando não utilizamos graus máximos de comportamento mas justamente o oposto). As atividades normais não necessitam de motivações extrínsecas, elas têm sua própria dinâmica e seus próprios objetivos intrínsecos; e as decisões são tomadas continuamente pelas próprias funções em ação, adaptando-se umas às outras e ao meio em que se inserem.

Podemos portanto definir o que é a política normal. São as relações constitucionais entre os interesses funcionais e os grupos de interesses dentro da comunidade em que interagem. Esse é o pão com manteiga (feijão com arroz) da antiga teoria política e obviamente não tem qualquer relação com a soberania ou até mesmo com o poder — pois para os antigos a existência do poder implicava uma inconstitucionalidade, uma tirania. Mas mesmo os autores modernos que aceitam a teoria da ‘‘soberania”, como Spinoza, Locke, Adam, Smith, Yefferson ou Madison entendem que a comunidade será mais forte quando os interesses funcionais puderem buscar seus próprios níveis e houver o menor exercício possível do “poder”. Spinoza, por exemplo, trata o poder como um reforço, Jefferson procura retirar-lhe a energia, Madison tenta equilibrá-lo e Smith faz dele um árbitro. Façamos agora um rápido apanhado sobre o significado da importância que atualmente é dada ao “poder” e ao “dispor do poder’’, como se as comunidades não pudessem viver sem ele.

Em primeiro lugar, há o desenvolvimento natural, pacífico e inócuo de um tipo de poder abstrato, que existe numa sociedade não invadida. As funções da civilização incluem a produção, transporte, a educação dos jovens dentro dos padrões estabelecidos pelo grupo, bem como certas polaridades sutis mas essenciais, como a experimentação e a estabilidade; há também certas fantasias irracionais e supersticiosas, como vingar-se dos crimes e proteger os tabus existentes. Os diferentes interesses do grupo entrarão em contínuo conflito, envolvendo não só indivíduos como grupos. Mas, como todos necessitam da comunidade, há também um interesse funcional em conciliar, manter a paz, harmonizar ou pelo menos fazer concessões. ~ plausível pensar que, no interesse da paz e da harmonia, seja criado um tipo qualquer de instituição abstrata que paire sobre os conflitos para resolvê-los ou preveni-los por meio de planos ou leis; este seria, sem dúvida, o poder. (Essa explicação sobre a origem do poder, embora plausível, não me parece histórica. Na verdade, qualquer comunidade viva do passado poderia ter alcançado os mesmos objetivos usando apenas a intuiçao, o tom de voz, uma mudança no olhar. Apenas isso e, de repente, surgiria a paz para surpresa do antropologista.) Sabemos que é muito mais provável que o poder abstrato tenha sido inventado nas sociedades simples diante de situações de perigo provocadas pela ameaça de invasões inimigas ou pela ira dos deuses. Mas essas ‘‘ditaduras’’ eram essencial-mente ‘‘ad hoc’’ e desapareciam por si. Isso poderia parecer surpreendente, quando pensamos que o poder corrompe, mas faz sentido (psicologicamente falando), pois a emergência é uma função negativa, enfrentar uma ameaça sob pré-requisitos que garantem as funções mais importantes da vida. Uma vez passado o perigo, o “poder” não tem uma dinâmica própria, nenhum interesse ulterior que o justifique. Para citar um exemplo recente: pareceu um fato extraordinário para os europeus — mas não para os americanos — que Washington, como Cincinnatus, tivesse voltado para sua fazenda e que o Congresso Continental tivesse se acabado. Não havia condições para a manutenção do poder.

(Na verdade— e foi por isso que escolhi esse exemplo — nas últimas décadas do século XVIII os americanos viveram, sob muitos aspectos, numa espécie de pacífica anarquia comunitária, temperada por algumas revoltas que não chegavam a receber o castigo devido. Como salientou Richard Lee, a Constituição lhes foi imposta por meio de truques e artimanhas, obra de grupos de interesses muito especiais; teria sido suficiente apenas acrescentar-lhe algumas emendas). Totalmente diferente desse idílio é a história universal da maior parte do mundo, seja civilizado ou bárbaro. Por toda parte vemos invasão, conquista e dominação que obrigavam os vitoriosos a manter e exercitar o poder e os outros a lutar para obtê-los como única forma de fugir do sofrimento e da exploração que lhes eram impostos. Isto também é inteiramente funcional, O conquistador é, basicamente, um pirata; ele e seu bando não participam da comunidade e não têm outro interesse além de roubá-la. Posteriormente. entretanto, a pirataria se transforma; o processo que faz com que as pessoas sejam levadas a agir movidas por razões extrínsecas, que vão do medo à punição até a chantagem, e mais tarde ao suborno e ao treinamento específico. Mas o que existe é apenas semelhante a uma verdadeira comunidade, pois a atividade que lá se desenvolve não é voluntária. Necessariamente, essas ações dirigidas e praticadas por motivos extrínsecos não serão tão fortes, eficientes, espontâneas, inventivas, bem planejadas nem tão agradáveis quanto as que normalmente ocorreriam numa comunidade livre. Muito cedo a sociedade se torna inanimada. Os meios que garantiam a ação comunitária, a iniciativa, a decisão foram esvaziados pelos poderosos. Mas os senhores de escravos, os exploradores e os governadores compartilham dessa sociedade e são eles próprios corrompidos por ela. Entretanto, jamais aprendem a deixar as pessoas em paz, a não pressioná-las e a renunciar ao poder que têm sobre elas. O povo, por sua vez, está derrotado e resignado demais para que possa protestar. Acontece então, inevitavelmente, que, à medida em que as pessoas vão se tornando mais estúpidas e mais descuidadas, a administração vai se tornando mais poderosa, e vice-versa. De modo geral, as culturas que estudamos nas melancólicas páginas da história são misturas patéticas onde ainda é possível, muitas vezes, reconhecer os ingredientes que as compõem. Há sempre uma certa quantidade de funções normais que vivem ou sobrevivem — o pão continua a ser feito, as artes e as ciências ainda interessam a alguns poucos, etc., mas, na maior parte das vezes, observamos o fracasso de qualquer funcionamento social ativo que foi impedido, pervertido, esgotado, paternalizado e explorado por um sistema de poder e de administração que esvazia os meios e coma decisões ab extra. E o pior é que, todos acreditam que se não fosse assim, não haveria sociedade. Se não houvesse licenças para os casamentos nem taxas a pagar, ninguém poderia casar-se e não nasceriam crianças; se não existisse o pedágio, n~o haveria pontes; se não houvesse bolsas de estudo para universitários, não haveria cultura; se a usura e a Lei de Ferro dos Salários não existissem, não haveria capital; se não houvesse inflação no preço dos medicamentos, não haveria mais pesquisa científica. E quando uma sociedade adota este tipo de raciocínio de que todas as atividades exigem licenças, assinaturas e a decisão de um poder abstrato, inevitavelmente acontece que qualquer homem dotado de ambição deseja obter o Poder e qualquer nação luta para tornar-se o Grande Poder. E quanto maior for a ânsia de poder de alguns, mais necessário parecerá aos outros competir ou submeter-se, para que possam sobreviver — e estarão certos. Muitos se tornam cruéis e impiedosos e outros vivem amedrontados.

Mas não é só isso que acontece; o pior ocorre quando os homens começam a pensar que o importante não são os benefícios que o poder lhes permitirá obter mas o poder em si, o prestígio que ele confere. Mas então o modelo de dominação-submissão já terá sido internalizado e terá dominado toda a situação. E assim, a menos que prove continuamente a sua própria potência, seu poder sobre os outros e sobre si mesmo, o homem será dominado pelo medo de ser derrotado ou enganado. Todas as funções vi tais serão usadas para prová-lo, caso contrário parecerá um sintoma de fraqueza. Contentar-se apenas em desfrutar a vida, produzir, aprender, dar ou receber, amar ou enfurecer-se (em vez de manter-se calmo) é ser vulnerável. Isto é diferente e tem conseqüências diferentes do modelo de dominação-submissão que citamos anteriormente. Um povo que tem suas funções naturais tolhidas mas está vivo acabará por rebelar-se, quando puder fazê-lo, contra os dízimos feudais, o comércio de tamancos, a proibição de pensar e de falar, o fato de pagar taxas sem estar representado no parlamento, os privilégios de uns poucos, a Lei de Ferro dos Salários, o colonialismo. Mas o nosso povo não se rebela contra o envenenamento, a deformação genética e a iminente destruição total do mundo em que vive.

Em vez disso, as pessoas querem chegar à gerência, sejam quais foram os artigos e mercadorias produzidos. O importante é ser um dos organiza-dores da companhia e ponto final; ou um personagem célebre, e ponto final. O Produto Nacional Bruto deve crescer sempre, mesmo que o nível de vida do povo permaneça o mesmo. Não há qualquer espécie de limite natural e portanto a única segurança é a repressão. O meio-ambiente está repleto de inimigos. Há uma tendência a viver amontoados e a diluir-se entre a multidão para evitar que qualquer diferença observada em nós nos torne vulneráveis e há, ao mesmo tempo, o desejo de destacar-se. Além disso, há a emoção de descobrir quem são os realmente poderosos, os líderes, as Grandes Nações, aqueles que tomam as decisões realmente importantes e que aparecem nas primeiras páginas dos jornais. Mas é claro que até mesmo esses lideres sentem-se impotentes diante dos Grandes Acontecimentos. Pois é característico desta síndrome que, tão logo surja a oportunidade de agir, de tomar medidas práticas para obter a felicidade, espiritualidade, coragem ou simplesmente a segurança, todos logo experimentem urna sensação de total impotência; a submissão internalizada assume o domínio da situação. A tecnologia moderna é demasiado complexa; há uma explosão demográfica; o computador saberá programar o melhor jogo bélico para nós; eles estão de olho em você, não se arrisque. ‘‘A poeira radioativa é um fato físico em nossa era nuclear e pode ser enfrentado, como qualquer outro faro’’ (Manual de Defesa Civil). ‘‘Sou forte, sexo é coisa que tanto faz ter, como não ter’ (jovem de 18 anos, acusado pela terceira vez de assalto criminoso). Em resumo, o outro lado da Psicologia do Poder é a idéia de que Nada-Pode-Ser-Feito; e a resolução desse beco sem saída é explodir tudo. Esta é a Guerra Fria.

Já estudei várias vezes essa psicologia de provar alguma coisa, resignar se e explodir catastroficamente (o masoquismo primário de Wilhelm Reich) e não pretendo fazê-lo aqui. Ela preenche o vazio deixado por uma função vital identificando-se como agente que frustrou essa função. Isto é seguido de um bem defendido orgulho que se transforma em pânico sempre que a situação exigir iniciativa, originalidade ou uma simples reação animal. Tentei aqui estabelecer uma relação entre essa psicologia e a aceitação unânime da idéia de “obter o poder para...” ou apenas obter o poder” como um fim em si mesmo. Há um circulo vicioso já que (exceto em situações de emergência> o exercício do poder abstrato, do poder de comandar e coagir tende a alienar, a impedir a função e a diminuir a energia, e desse modo aumentar a psicologia do poder. Mas naturalmente a conseqüência desse processo é colocar-nos, de fato, num estado de emergência permanente, de modo que o poder possa criar sua própria necessidade. Tentei mostrar como, do ponto de vista histórico, essa psicologia tem sido exacerbada pelo infeliz sistema de motivação extrínseca através de incentivos e castigos (que incluem lucros, salários e desemprego), capazes de reduzir as pessoas ao estado de organismos inferiores, semelhantes aos pombos do Professor Skinner. Ao passo que a função normal é motivada intrinsecamente, visando alcançar determinados objetivos, e provoca o crescimento da criatividade e da liberdade. Sempre que as pessoas não tiverem contato direto com aquilo que precisa ser feito, nada poderá ser bem feito; elas estarão sempre atrasadas e assim a emergência acaba por se tornar crônica. Mesmo quando estão cheios de boas intenções, alguns governantes não se importam o suficiente com as necessidades da sociedade, nem mesmo quando seus computadores são capazes de programar com a velocidade de um raio. Cheguei à conclusão de que o consenso a que chegaram os cientistas políticos quando afirmam que a teoria política é basicamente o estudo das manobras do poder, é ela própria uma ideologia neurótica. A política normal trata das relações de determinadas funções dentro da comunidade e um tal estudo resultaria, muitas vezes, em descobertas práticas que poderiam resolver problemas — e não limitar-se-ia a predizer o resultado de eleições, sem nada solucionar ou brincar de guerra para destruir a humanidade. Deixem que resuma essas afirmações numa proposição simples e nada escandalosa. Em todo o mundo, é a má política doméstica que cria a mortífera política internacional, O pacifismo, ao contrário, é revolucionário. Jamais alcançaremos a paz enquanto não ocorrerem profundas mudanças na estrutura social, que deverão incluir a eliminação do poder nacional soberano.

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